"Nestas impressões sem nexo, nem desejo de nexo, narro indiferentemente a minha autobiografia sem factos, a minha história sem vida. São as minhas Confissões, e, se nelas nada digo, é que nada tenho que dizer." Fernando Pessoa
07/04/2012
293
Não percebi de imediato que eram um casal. Ele, bem vestido ao estilo corporate casual seguia atrás dela, ruiva, cabelo apanhado no alto e vestido preto, austero. Não lhe vi os olhos mas adivinho que fossem verdes. Só as mulheres de olhos verdes usam colares de jade. Pararam ao meu lado, de pé, e abraçaram-se. A clara diferenca de idades em nada se apaziguava com a barba que ele deixou crescer para esconder a cara de menino que ainda guarda dos tempos de adolescente.
O 293 vai cheio. Vai sempre. É o expresso que só circula nas horas de ponta e que nos poupa 25 minutos de viagem. São poucos os que vêm aos pares. Quase todos nós somos caras ensonadas e corpos solitários. As senhoras trazem sacos na mão com os sapatos de salto alto que condizem com o fato, enquanto que nos pés exibem os New Balance do fim-de-semana. Eu carrego os meus saltos nos pés. Ainda sou demasiado europeia para aderir a esta moda do saco.
Á minha frente esta uma jovem asiática que lê um livro. É a única. Já ninguém lê no autocarro. Eu, pessoalmente, nunca consegui. Fico enjoada com os altos e baixos da estrada. Sempre preferi ler no comboio, onde a viagem é mais suave. Guardo para o autocarro a música que me acompanha desde que fecho a porta de casa, ainda de manhã cedo, ate ao momento em que a fecho já ao ao cair da noite.
Como eu, a maioria tem headphones. Mas a música deles vem dos smartphones onde ao mesmo tempo actualizam o status no Facebook. Já ninguém lê no autocarro. Já ninguém lê. Já nem sequer o jornal. Vêem-se os destaques na mais recente app, clica-se no e-mail, há quem esteja no youtube a ver o vídeo mais recente.
Em dias de sol e céu azul, como o de hoje, a entrada na cidade é das mais belas visões que tive na vida. O brilho do mar para onde a Opera House se debruçaa, os barcos que por ali andam e a Harbour Bridge são de uma imponência que não consigo explicar com palavras. Queria emprestar-vos os meus olhos. Queria que vissem esta cidade com os olhos da amante apaixonada que sou, depois da esposa de 30 anos que fui de uma cidade que agora me parece pequena e tacanha. Olho para os rostos dos que fazem esta viagem todos os dias e indago-me se sabem a sorte que têm, o privilégio que é pertencer-lhe ou se já se sentem maridos e mulheres cansados da rotina. Dizem que só sabemos o que temos, quando perdemos.
Entramos no coração da cidade. Metade do autocarro desperta e sai a procura do latte, cappucino ou Flat White. Eu sou rapariga de hot chocolat. O Tony da 7/Eleven da George St já deve estar a minha espera. Eu saio na proxima.
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3 comentários:
Hot chocolat...hummmmmm.
E o estudo? Como vai?
G.
Gostei muito deste texto, fizeste-me acompanhar-te no autocarro e através dessa cidade! Beijinhos!
Primeira vez que comento aqui.
Fizeste-me ter tanta saudade agora...
Mas embora me mudasse já amanhã para aí, nunca perderia Lisboa de vista.
Tenho uma paixão insana e um caso de amor com esta cidade.
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